homem à deriva
as telhas prateadas de zinco formavam uma leve camada que o separava do céu, no chão do quarto deitado em seu colchão gelado e úmido, ele se esticava e se encolhia, a noite parecia fisgar uma nota musical triste de dentro de seu corpo, tocando seus acordes de sanfona, o corpo se expandindo e se contraindo nesse vai e vem ritmado, as lágrimas pingando uma a uma, não podia reter o que nem fazia ideia do que estava acontecendo: independente dele, acontecia - agora surgia imagens. era ela, clara e limpa, cheirosa, dentro de cetim e filtro de nuvens. na memória ela vinha enorme, seu cheiro contaminava tudo, de olhos fechados lembrava bem do aroma que saia dos seus cabelos, era floral e frutado, até que atingia notas cítricas. depois lembrava de como o cheiro do seu sexo ficava impregnado em suas mãos, o cheiro dela, o cheiro dela que também era dele. isso o deixava excitado, agora a ereção se erguia solene em meio ao riacho de dor, como um monumento brilhando em meio as trevas, exigindo, imediatista, algo que ele não podia dar. não entendia como o tesão e essas crises andavam sempre juntas, lembrava de vários outros momentos em que o pau gritava de tesão na hora mais aguda da angústia. era mais fácil quando morava com ela, a violência do sexo, a concha amorosa depois, o abrigo compartilhado, era tudo que ele precisava agora. estava cansado de se sentir desabrigado, era isso, estava cansado de fingir que era mais forte do que realmente é. lembrava agora de seu sorriso, das piadas inconvenientes que fazia nas horas mais impróprias, sempre dançando com algum tipo de absurdo, sempre trazendo um susto consigo. a casa de dois cômodos ficava no fundo do terreno comprido, polvilhado com algumas árvores, a vista era bela lá de fora, eucaliptos ao redor, agora dentro tudo que ele via era seu próprio breu interno, tentava fazer algo com essa massa que o cercava, tentava dar forma a dor, tentava com ela construir algum tipo de porta. tudo que ele queria era sair disso, tudo que queria era conseguir parar de fumar, parar de procrastinar e estudar de verdade, engolir livros e mais livros, saber lacan e freud de cabo a rabo, comparar teorias e com isso quem sabe criar novas formas de ver o mundo. queria entrar numa academia também, seu corpo magro o incomodava, sua postura levemente encurvada o incomodava, seus dentes, os da frente principalmente, depois daquela queda de skate nunca mais tinham sido os mesmos, a prótese vagabunda escurecia a cada ano e tinha tons de céu nublado, isso o impedia de sorrir, talvez por isso gostava tanto de alimentar uma visão pessimista do mundo. queria estudar psicologia, queria atender, queria ouvir pessoas, queria tocar subjetividades, ajudar pessoas a sair do buraco. mas como se nem ele conseguia sair desse buraco que cada dia parecia maior? se via afundar, de fora, impotente, se assistia cavando sua própria cova, era tudo que conseguia fazer. talvez um emprego, talvez um novo amor, esquecer aquela travesti que foi embora, esquecer aqueles quatro anos, esquecer todas as conversas e confissões, toda a vida compartilhada, todas as risadas, os medos, as músicas, filmes, textos, livros, tudo que morava dentro dessa gruta. ele sabia que ela tinha salvado sua vida, ele sabia que também tinha feito algo parecido por ela, mas por algum motivo achava que ela era muito mais forte do que ele, agora longe e vivendo aparentemente bem, sozinha, peitando o mundo, enquanto ele se sentia definhar e minguar, se sentia opaco, perdendo as cores, perdendo o brilho, se sentia desaparecer. o pau ainda duro entre as pernas e o coração partido em estilhaços vítreos. o que fazer com esse amor agora? o que fazer com esse tesão? entrar em aplicativos? procurar sexo fácil com gays desesperados por afeto? era algo que já havia feito várias vezes, mas que só aumentava o tamanho de seu próprio buraco no peito. semana passada, no dia da terapia, ele foi mais cedo, tinha o dia inteiro pra gastar, entrou no aplicativo em busca de ao menos um boquete, isso poderia trazer algum alívio, não o tiraria de seu estado de calamidade, mas ao menos era um movimento, ele precisava disso. voltou pra casa ouvindo bjork e olhando o vidro do ônibus borrando com sua velocidade o verde das árvores nas laterais da estrada. era bom se sentir desejado, era bom fazer esse tipo de coisa, assim ele se sentia livre daquilo, livre dela, gostar dela era como se fosse uma prisão, às vezes sufocava. agora sua ausência contaminava tudo, todas as músicas lembravam ela, ecoavam algumas palavras que usava, o modo que falava. nunca havia recebido um sexo oral como aquele, lembra de ter dito a um amigo, eu poderia viver só com isso, me satisfazendo pra sempre só com aquele oral. talvez nunca mais encontrasse outra como ela. de qualquer forma, tê-la também era complicado, ela transbordava da fôrma, como um bolo que cresceu demais, sempre derramando e escorrendo pelas bordas. moraram juntos, namoraram, se amavam mais que tudo, ainda assim nada parecia ser o suficiente para que a relação fosse estável. ele sabia que precisava dar um jeito na vida dele, o problema é que sem ela isso era ainda mais difícil. de alguma forma ela lhe dava o que lhe faltava, dela vinha algo que ele não sabia explicar, era como um elixir de vida. perder um amor é ser chutado, é ser jogado na rua completamente nu, é como uma criança perder o pai e a mãe de uma única vez, a sensação desoladora de não ter uma casa para onde voltar, nenhum abrigo durante qualquer tempestade. agora o colchão parecia sobre o mar revolto, à deriva, ele ficava ali segurando sua ereção como se fosse um troféu, sem ganhador nenhum. sentia o vazio, sentia o vazio do seu peito, o vazio que poderia ser ocupado por ela ou outra, o vazio do buraco em seu dente da frente. aquele acidente há cinco anos ainda continuava reverberando. tudo isso tinha que acontecer justo hoje? o emprego, o dente... as noites têm sido parecidas, ele passava horas jogando, evitando sentir o que precisava sentir, tinha alguns amigos, alguns iam o visitar, levavam maconha em flor, cheirosa e embriagante, bebiam vinho, riam, ouviam música, depois voltava para os jogos, ele sempre poderia contar com os jogos, eles haviam-no ajudado em todos os piores momentos da sua vida, na adolescência quando ninguém o entendia ele podia recorrer ao videogame, agora tinha um pc gamer. tinha alguns contatos pra bater punheta, quando estava com tesão mandava mensagem pra aquela garota que julgava uma puta fácil, jamais teria nada com ela, mas servia pra gozar a distância. trocava nudes, se aliviava, depois se sentia culpado, porque amava uma e gozava com outra. foi por essa época que percebeu que foder com amor é muito melhor, não existe prazer maior do que esse, pelo menos não no âmbito sexual. e agora todos esses sentimentos se encontravam naquela esquina que era as quatro da manhã de hoje, em posição fetal pensava nela, pensava que era muito engraçado tudo aquilo ter acontecido no mesmo dia. a proposta de emprego na cidade vizinha, um salário alto, uma oportunidade única, é muito difícil alguém sem curso superior ganhar esse tipo de valor, ele precisava aproveitar, precisava fazer dar certo, custe o que custar. o problema é que o tio lhe havia arranjado esse serviço, se não desse conta criaria um mal-estar incorrigível na família, isso fazia com que tudo tivesse um peso maior, a pressão dobrava. não poderia falhar, iriam julgá-lo um covarde, um vagabundo, e era exatamente isso que andava pensando de si mesmo, primeiro porque não conseguiu namorar a travesti, mesmo a amando tanto, depois porque não conseguia se mover na direção de seu desejo, não conseguia estudar para o vestibular e nem ir atrás das coisas que precisava fazer para ser um psicólogo. ter alguém de fora observando os defeitos que ele mais tinha vergonha em si mesmo era dilacerante, sabia que era inteligente, sabia que poderia dar um jeito nisso, mas de alguma forma se sentia condenado pela nuvem negra que cobria toda sua família, se sentia amaldiçoado. a mãe com uma história triste de sobrevivência que lhe deixara sequelas profundas, como canions imensos num deserto vasto. seu pai bêbado e internado numa clínica, seu irmão, de quem dependia, seguia os mesmos passos do velhote. ele se sentia um refém na própria vida, não conseguia ver beleza em nada, havia perdido as coisas que lhe davam sustentação e agora esse colchão à deriva no oceano dentro da noite longa, escura e fria. o pior de tudo era o dente, o maldito dente da frente, aquela prótese acinzentada, logo depois da notícia do emprego ela caiu, foi quando estava se arrumando pra ir ao mercado, talvez tivesse escovado os dentes com força demais. o barulho da prótese tocando a pia foi como um singelo sino, olhou na direção do espelho e teve medo de sorrir. seu rosto pálido e branco, ficou ainda mais pálido e branco, vinha como se de outro mundo, fantasmagórico, uma aparição, esticou os cantos da boca lentamente, não era exatamente um sorriso, seria impossível ser isso, tinha forma de sorriso, mas não sua essência. observou o orifício negro entre um dente e outro, o coração coiceando como o diabo, o céu nublou como se nunca antes, o chão se abriu. como ele iria a entrevista de emprego assim? como conseguiria um emprego banguela? era como se o buraco do dente estivesse engolindo tudo. ele se perguntava quem era depois de tudo aquilo, de tudo que viveu e sofreu, se perguntava de onde tiraria forças, parecia que a vida só sabia tirar e nunca lhe dava nada. lembrou-se de outra noite, das músicas da lana del rey que ela havia mostrado. lembrou de como ela dava como nenhuma mulher nunca havia lhe dado, como poderia se entregar tanto no sexo? que sincronia era aquela? que conexão? não era só tesão, era amor, lhe fodia com força e lhe dava doces beijinhos. era como se toda dor viesse junto com uma colher de mel, mas agora nada disso por perto, nenhum amor, nenhum carinho, nenhuma cama compartilhada, só esse dente sugando tudo, tudo o que ele já nem tinha pra dar. antes de deitar ele confessou que ainda lhe amava muito, que precisava dela, que o amor que sentia nunca iria diminuir, lhe mandava uma dezena de mensagens em meio a lágrimas e desespero, a única coisa que me faria sentir bem agora seria um abraço seu, mesmo que fosse como amigos, mesmo que nunca mais fossemos ter nada romântico, só um abraço e um cochilo em seus braços, nada mais do que isso, foi isso que ele disse. nunca havia amado ninguém daquela forma e isso era algo que nunca iria entender, haviam separado e voltado diversas vezes, era como cortar a cabeça de uma hidra, sempre nascia algo novo, duas vezes mais forte. como continuar vivendo com esse amor explodindo por dentro sem seu objeto por perto? o problema agora era o emprego, o dente, foda-se aquela travesti. desgraçada! por que tinha que ir embora? por que precisou ir pra tão longe de mim sabendo o quanto a amo e preciso dela? se questionava, rolava no colchão, rosnava, uivava, com raiva de tudo e de si mesmo. não era sobre a travesti, não era sobre isso, era sobre o emprego, sobre o buraco no dente, mas como teria forças agora? com certeza já estava dando pra outros, já estava criando fantasias com gaúchos e seus chimarrões, não podia mais contar com ela, pelo menos não da mesma forma. lembrou da outra noite em que chorou por ela exatamente nesse horário, as quatro da manhã. na tarde seguinte ela mandou uma mensagem dizendo que havia sonhado com ele. contou que ouviu uma voz feminina gritando o nome dele e isso a tinha acordado, não sabia exatamente se era realidade ou sonho, ficou ouvindo a voz repetindo seu nome, dizendo pra ele não fazer isso, dizendo para ele parar. achou curioso ambos terem compartilhado esse momento a distância, ele chorando por ela e ela sonhando com ele, no mesmo horário. com certeza havia algo inexplicável acontecendo entre os dois, era isso que os mantinha juntos, era essa coisa que poderia ser bruxaria ou deus. acho que o amor não se explica, é sorte pura e simples. ela também sentia falta dele e isso fazia com que ele não se sentisse tão sozinho, fazia com que ele não se sentisse um otário sofrendo por ela ter o abandonado. se achava bonito, inteligente, tinha um corpo legal, se achava magro demais, mas tinha um corpo lindo mesmo assim, ele sabia disso. havia vivido uma vida interessante, morado em alguns lugares, experimentado coisas e corpos, se permitido se aventurar, ele tinha um repertório bacana sobre filósofos e psicanalistas, conseguia pensar de uma forma inovadora e tinha uma personalidade íntegra, ele sabia que era diferente dos outros, mesmo assim nada era o suficiente, enfiado na zona rural de uma cidade do interior sentia-se sozinho, geograficamente isolado. ela tinha dito que ele era um tipo de homem “mais fresco”, não de modo pejorativo ou gay, apenas fresco. um novo tipo de homem, que não tinha medo de sentimentos, que conseguia admirar arte de maneira profunda, que entendia melhor as mulheres, que não tinha medo de seu lado sensível, que poderia te foder com força e chorar com poesia, a masculinidade e a sensibilidade não são características mutuamente excludentes, ela sabia disso, ela dizia ter encontrado isso nele. também elogiava seus olhos que imploram, olhos de dezenas de cães abandonados, seu maxilar forte, uma mandíbula tão definida que parecia que seus ângulos fossem capazes de cortar, gostava do nariz também, o nariz enorme e anguloso, gostava de toda geometria de seu rosto, era lindo e raro como uma obra cubista. qualquer um naquela situação estaria patinando na vida, perder o emprego, a travesti que tanto amou, o pai ser internado, era muita coisa ao mesmo tempo, qualquer homem sentiria o impacto, ela argumentava tentando deixá-lo mais tranquilo e nada daquilo adiantava. se achava um merda, incapaz de sair daquilo, sabia o que queria e o que precisava fazer, mesmo assim não fazia. se sentia um inútil, acordava ao meio-dia e se sentia pior. agora tudo isso convergia naquele colchão à deriva no oceano, as lufadas de vento, as ondas carregando-o sem direção, ele exposto a todas as tempestades marítimas e sem ter como se proteger. escolheu pensar nela, tudo começa com uma escolha, não é? escolheu imaginar que ela estava ali com ele, ela disse que daria tudo certo, ela disse que era pra ele tentar, existia a probabilidade de se sair bem na entrevista de emprego, depois poderia ir a um dentista, tentar já era mais que o suficiente, o que viesse depois da tentativa seria lucro, ele não tinha absolutamente nada a perder. abraçou o travesseiro como se fosse ela, respirou perto de sua têmpora como costumava fazer quando aquecido dentro da proteção daquele abraço, era a única que poderia lhe salvar do naufrágio, lhe colocar de volta em terra firme. sentiu seu toque, sentiu aquele cheiro característico de cabelos bem lavados, mistura de perfumes, hálito e pele, se deixou embriagar, se sentia sugado para o sono mais profundo, protegido agora, o vazio, o frio e a escuridão já não o assustavam, tinha sido atropelado por tudo, estava meio soterrado, ainda assim acolhido por aquele pensamento que o abraçava, adormeceu junto de sua amada, encapsulado desapareceu na turva lacuna entre os dentes.
(the desperate man, self-portrait - gustave courbet)